Deve caber à Receita Federal transação tributária dos créditos que administra
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Helcio Honda*
A finalidade precípua do Estado democrático é a de trabalhar para que a população, organizada sob leis e normas, direitos e deveres, seja atendida em suas necessidades fundamentais e possa, num regime de liberdade, alcançar boas condições de bem-estar e vida. No Brasil, como se observa ao longo de décadas, esse conceito é às vezes subvertido, com uma inadequada inversão de valores. Daí a importância da reforma administrativa. Porém, enquanto ela não é votada, cabe corrigir pontualmente algumas distorções.
Agora, estamos diante de uma interessante oportunidade de reparar um desses problemas, com o aperfeiçoamento do Projeto de Lei 2.384/2023, no que diz respeito ao instituto da transação tributária. A proposta, de autoria do Executivo federal e sob regime de urgência na Câmara dos Deputados, disciplina a proclamação de resultados de julgamentos, na hipótese de empate no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF), e dispõe sobre a conformidade tributária no âmbito da Receita Federal e sobre o contencioso administrativo fiscal de baixa complexidade.
Para se entender melhor a questão, cabe lembrar que a transação tributária, embora remonte a 1966, teve sua regulamentação somente em 2020, por meio da Lei 13.988. A norma estabeleceu essa possibilidade para os créditos de impostos que estejam sob a administração da Receita Federal, sem qualquer condicionante ou sujeição à validação por parte da Procuradoria da Fazenda Nacional.
No entanto, em 2022, a Lei 14.375, de maneira inadequada, condicionou a efetivação da transação tributária à observância do disposto na Lei Orgânica da Advocacia-Geral da União (nº 73/1993), o que inviabiliza sua aplicabilidade no âmbito da Receita Federal. Ou seja, este órgão, num desafio à lógica, não pode efetuar a transação referente aos créditos tributários que administra. Tal alteração legal ocorrida no ano passado, de uma certa forma, criou uma reserva de mercado para a Procuradoria da Fazenda Nacional nos procedimentos para a realização de Transação Tributária, o que contraria os interesses da sociedade
Obviamente, disputas internas dos órgãos públicos, questões burocráticas e interesses corporativistas jamais deveriam sobrepor-se ao bem maior das pessoas, da população e dos setores produtivos. É o caso dessa mudança na legislação em 2022, que em nada ajuda na solução dos litígios e em termos de segurança jurídica para os contribuintes. Pelo contrário, é danosa e custosa para a sociedade e o próprio Estado.
Com o Projeto de Lei 2.384/2023, o Governo Federal busca uma solução de consenso para o voto de qualidade no CARF. De fato, é algo que precisa ser devidamente regulamentado em lei. A proposta, porém, merece muita atenção e tem espaços para aperfeiçoamentos, como preconiza o seu relator, deputado Beto Pereira (PSDB – MS), no que diz respeito à transação tributária.
Contudo, considerando que o Estado deve servir à sociedade e não se locupletar dela, são inconcebíveis às reações ao aperfeiçoamento do projeto para que a transação tributária seja realizada, em sua amplitude, no âmbito da Receita Federal, no que diz respeito aos processos que se encontrem neste órgão. Tal possibilidade é uma forma salutar de ampliar os mecanismos de redução de litígios, em prol dos contribuintes, assegurando recursos para a União. É incongruente e sem sentido o contribuinte não poder valer-se desse instituto perante o órgão responsável pela gestão da dívida tributária, porque a competência para tal é de outra repartição pública.
O aperfeiçoamento referente à transação tributária na linha do que anuncia o deputado Beto Pereira é uma dessas oportunidades, às quais me referi no início deste artigo, de corrigir distorções pontuais da ação do Estado sobre a sociedade. As alterações propostas são necessárias e simplificam os procedimentos, promovem segurança jurídica, resolvem litígios, acarretam menor custo para o contribuinte e agilizam a arrecadação. Por que recusá-las?
*Helcio Honda, advogado formado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, com especialização em Direito Empresarial pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, é conselheiro da OAB-SP e diretor-titular do Departamento Jurídico do Centro das Indústrias do Estado de São Paulo (CIESP).